O Discípulo e a Renúncia

Por: Alexandra Ferreira

Primeira Leitura: Sabedoria 9:13-18B
Salmo: 90:3-4, 5-6, 12-13, 14, 17
Segunda Leitura: Filémon 9-10, 12-17
Evangelho: Lucas 14: 25-33



Neste Domingo, Lucas apresenta uma passagem com palavras difíceis de Jesus. Há certas afirmações que se encontram no Evangelho de Lucas que são particularmente duras, são difíceis. Vejamos, então, Lucas 14:25-33, o Evangelho deste Domingo.


“Seguiam com ele grandes multidões; e Jesus, voltando-se para elas, disse-lhes:

«Se alguém vem ter comigo e não me tem mais amor que ao seu pai, à sua mãe, à sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, às suas irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não tomar a sua cruz para me seguir não pode ser meu discípulo.

Quem dentre vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro para calcular a despesa e ver se tem com que a concluir? Não suceda que, depois de assentar os alicerces, não a podendo acabar, todos os que virem comecem a troçar dele, dizendo: 'Este homem começou a construir e não pôde acabar.'

 
Ou qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se senta primeiro para examinar se lhe é possível com dez mil homens opor-se àquele que vem contra ele com vinte mil? Se não pode, estando o outro ainda longe, manda-lhe embaixadores a pedir a paz. Assim, qualquer de vós, que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo.»”

 
Estas são das palavras mais difíceis de Jesus… O primeiro ponto a notar é que Jesus está a estabelecer as condições para se ser um dos Seus discípulos. É disso que trata toda a passagem. A palavra discípulo, “mathetes”, significa literalmente "um estudante". Por isso, quem quer ser aluno de Jesus tem de fazer o seguinte: odiar a sua mãe, o seu pai, a sua irmã, o seu irmão, a sua mulher, os seus filhos e até a sua própria vida – caso contrário não pode ser aluno de Jesus. O significado comum da palavra grega "ódio", “miseó”, é exactamente o que significa em português, ódio, normalmente, o oposto da palavra "amor", “agapao, ágape”. Assim, a questão passa a ser: "Porque é que Jesus diz para odiarmos a nossa família aqui em Lucas 14 quando, apenas sete capítulos antes, nos disse para amarmos os nossos inimigos? Recordemos Lucas 6:35:


“Vós, porém, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. Então, a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para os ingratos e os maus.”


Esta aparente contradição já nos deveria dar uma pista de que Jesus não está a falar literalmente. No entanto, também sabemos que um dos métodos favoritos de Jesus para ensinar é o que os estudiosos chamam hipérbole, ou seja, exagerar uma ideia de uma forma chocante a fim de marcar um ponto de vista, mas também para ajudar a memorizar a mensagem. O exemplo de Jesus mais famoso é o de Marcos 9:45-47 quando diz: "Se a tua mão te faz pecar, corta-a. Se o teu pé te faz pecar, corta-o. Se o teu olho te faz pecar, arranca-o". Isto é uma hipérbole. Na verdade, Ele não quer que os Seus discípulos se maltratem a si próprios. Ele é que deve ser amado acima de tudo. E se amarmos a própria vida mais do que amamos Jesus, não podemos ser Seus discípulos.


Para melhor esclarecer, podemos olhar para este episódio num Evangelho diferente. Em Mateus 10:37, Jesus transmite este ensinamento, mas de forma mais explícita e um pouco menos hiperbólica:


“Quem amar o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim. Quem amar o filho ou filha mais do que a Mim, não é digno de Mim.”


Jesus está a dizer muito claramente que não se pode amar nenhum membro da família, seja ele quem for, mais do que Se ama a Ele. Mateus 10 ajuda-nos, assim, a compreender Lucas 14. Portanto, Jesus está a usar uma hipérbole para sublinhar que não se pode amar ninguém mais do que a Ele, caso contrário não podemos ser Seus discípulos.

 
Isto não diminui necessariamente o choque do que Jesus estaria a dizer à Sua audiência judaica, porque Ele está a dizer: "Tens de Me amar mais do que a qualquer outro ser humano, incluindo a tua mulher, os teus filhos ou os teus pais". Mas como é que um judeu do século I ouviria estas palavras? Afinal de contas, o quarto dos Dez Mandamentos é "honra teu pai e tua mãe", literalmente, "glorifica" teu pai e tua mãe. Que direito tem Jesus de Nazaré de exigir que O amemos e honremos mais do que ao nosso pai e à nossa mãe? Quem é que pode exigir esse tipo de amor exclusivo, absoluto e supremo? É o próprio Senhor, o próprio Deus quem o pede em Deuteronómio 6. Esta passagem, denominada “Shema” (que em hebraico significa “escuta”) é até hoje recitada três vezes por dia pelos judeus devotos: "Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças."


Este episódio é exemplo perfeito de como Jesus Se apresentou e Se revelou. Ensina através de enigmas, parábolas e hipérboles que implicitamente exigem que a única explicação razoável para o facto de poder pedir tanto amor é que Ele não é apenas o Messias, não é apenas o rei de Israel ou um profeta ou o novo Moisés, mas é o único Deus de Israel. Ele é o Deus do “Shema” em pessoa, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. E é assim que Ele pode exigir esse amor absoluto e exclusivo. Está a fazer exigências que só o próprio Deus poderia fazer a uma audiência israelita.


Em todo o caso, o contexto do episódio dá-lhe sentido, porque Jesus continua a aprofundar o ensinamento. Se Ele Se limitasse a dizer "é preciso odiar todas estas pessoas para ser Meu discípulo", seria um pouco mais difícil de o compreender, mas nos versículos seguintes explica melhor o significado. Por exemplo, depois de estabelecer esta condição de discipulado, a primeira coisa que diz é: “Quem não tomar a sua cruz para Me seguir não pode ser Meu discípulo.”. O que é que Jesus quer dizer quando diz "odeia a tua própria vida"? Não quer dizer que nos odiemos a nós próprios, mas que estejamos dispostos a dar a vida, até à cruz por Sua causa. Estar disposto a sujeitar-se à crueldade e ao castigo de uma execução romana se se quiser ser Seu discípulo. Para nós, é muito fácil espiritualizar isto. Seja qual for o sofrimento que possamos enfrentar, podemos pensar "Oh, é isso que Jesus quer dizer com 'toma a tua cruz'" e essa é uma aplicação perfeitamente legítima, absolutamente correcta. Mas no seu contexto original, quando Jesus estava a falar aos discípulos, quando estava a falar às multidões, não era isso que elas ouviam. Porque para eles, a palavra cruz (“stauros”), era literalmente uma referência à forma como o Império Romano executava os condenados por suspensão e asfixia, em público, normalmente despidas de todas as suas roupas. Era a forma de morte mais vergonhosa, mais dolorosa e mais humilhante, que os romanos usavam para os escravos. Era a coisa mais aterradora que se pode imaginar, ser crucificado. E Jesus diz: "Queres saber o que quero dizer com «odiar a tua vida»? Se não tomares a tua cruz e não Me seguires, não podes ser Meu discípulo". Se não estiveres disposto a ir para a guilhotina ou para a cadeira eléctrica, então não podes ser Meu discípulo.


É isso que Jesus está a fazer. Ele é um rabino, um professor, e está a fazer estas exigências chocantes aos discípulos para lhes ensinar o custo de sermos Seus seguidores. E fá-lo quando grandes multidões O acompanhavam. Jesus começava a tornar-se muito popular e agora estabelece condições. “Querem mesmo ser Meus discípulos? Ou querem apenas ouvir os Meus sermões? Vou dizer-vos o que é preciso para serem Meus seguidores, o que vos vai custar. Vai custar-vos tudo.”


A leitura do Antigo Testamento para este Domingo é do Livro da Sabedoria de Salomão 9:13-18, e é isto que diz:


“Pois que homem poderia conhecer a vontade de Deus? Quem poderá imaginar o que pretende o Senhor?

 Os pensamentos dos mortais são hesitantes, e incertas as nossas reflexões; porque o corpo corruptível é um peso para a alma, e esta tenda terrena oprime a mente cheia de cuidados.

Mal podemos entender o que há sobre a terra e o que está ao nosso alcance dificilmente o descobrimos; quem poderá, pois, penetrar o que há no céu?

E quem conhecerá a tua vontade, se não lhe deres a sabedoria, e não enviares o teu santo espírito lá do céu?

Assim se endireitaram as veredas dos que vivem na terra, os homens aprenderam o que é do teu agrado e pela sabedoria se salvaram.”


Porque é que esta passagem se justapõe ao ensinamento de Jesus no Evangelho deste Domingo? Aquilo que a Igreja pretende aqui é usar esta a distinção entre as coisas do Céu, eternas, e as coisas da terra, passageiras. O Espírito Santo, a sabedoria de Deus, é eterno, é perpétuo. Por isso, o que se pretende com esta passagem é dizer-nos que temos de escolher as coisas do Céu sobre as coisas da terra. Temos de nos lembrar que há coisas maiores nos Céus do que podemos imaginar. Se nem sequer conseguimos perceber as coisas da terra, que estão tão longe da nossa compreensão, quanto mais as coisas do Céu? Portanto, a primeira leitura tenta inculcar em nós uma perspectiva eterna, para lá das coisas mundanas.


E é isso que Jesus está a fazer também na parábola. Ele está a tentar fazer-nos compreender que é muito fácil fazer das nossas posses e até das pessoas da nossa vida, o nosso último objectivo, o nosso fim último, a razão para estarmos aqui; que podemos dedicar toda a nossa vida às relações com a nossa família, amigos, cônjuge e filhos. Esta atitude é natural e temos deveres a esse respeito, mas é fácil cair na tentação de pôr todas essas coisas à frente de Cristo. Esse é o ponto. É fácil colocar o nosso tesouro em bens terrenos ou nos que nos rodeiam, em vez de o colocarmos no Deus que criou todas as coisas e nos deu todos os dons.


Portanto, Jesus está a dizer que se estivermos dispostos a renunciar a tudo o que existe neste mundo agora, se estivermos dispostos a pagar esse preço agora, o que recebermos na ressurreição supera em muito o que poderá parecer estarmos a perder nesta vida. Não é uma perspectiva fácil e a única forma de a termos, como diz a primeira leitura, é através do dom do Espírito Santo. O Espírito Santo dá-nos a sabedoria para vermos as coisas numa perspectiva eterna. É muito fácil, especialmente na cultura ocidental, mesmo dentro dos círculos cristãos, colocar a maior parte das nossas energias no bem-estar terreno da nossa família e amigos, mas o que estamos a investir no seu bem-estar espiritual? Quanto esforço fazemos para nos certificarmos de que eles estarão connosco para sempre? Se eu realmente os amasse, colocaria Jesus em primeiro lugar e isto arrastaria tudo o resto. É disso que trata o Evangelho deste Domingo, de pôr as coisas no seu lugar. E em primeiro lugar vem Jesus.


O salmo para este Domingo, o Salmo 90, é sobre aprender a contar os nossos dias, sobre como a vida é efémera, como a vida é curta. Salmo 90:9-10 , 12:


“Todos os nossos dias se esvanecem pela tua indignação; os nossos anos dissipam-se como um suspiro.
A duração da nossa vida poderá ser de setenta anos e, para os mais fortes, de oitenta; mas a maior parte deles é trabalho e miséria, passam depressa e nós desaparecemos.”


Ensina-nos a contar assim os nossos dias, para podermos chegar ao coração da sabedoria.”

Portanto, se Jesus de Nazaré é quem diz ser, se é Deus encarnado, então é o Salvador do mundo. Então, temos de pôr em perspectiva a nossa vidinha de 50, 60, 70, 80 anos.


Contem os vossos dias, tenham um coração sábio e entendam que Ele tem de ser o Senhor da vossa vida. É isso que Jesus exige dos Seus discípulos, fidelidade absoluta e completa a Ele, colocando-O em primeiro lugar na nossa vida. É esse o ponto central que precisamos de alcançar. O Salmo 90 é um excelente salmo para nos ajudar a ganhar sabedoria numa perspectiva eterna da vida.


O Catecismo da Igreja Católica no parágrafo 2544 cita a passagem do Evangelho deste Domingo e diz:


“Jesus impõe aos seus discípulos que O prefiram a tudo e a todos e propõe-lhes que renunciem a todos os seus bens por causa d'Ele e do Evangelho. Pouco antes da sua paixão, deu-lhes o exemplo da pobre viúva de Jerusalém que, da sua penúria, deu tudo o que tinha para viver. O preceito do desapego das riquezas é obrigatório para entrar no Reino dos céus.” (CIC 2544)


Neste exigente trecho do Evangelho, Jesus afirma, então, que quem não renuncia a tudo quanto tem não pode ser seu discípulo. A Igreja interpreta estas palavras como um convite claro a colocar Cristo no centro da vida, acima de tudo e de todos. Isto implica, em primeiro lugar, uma disposição interior de desapego: não preferir nada nem ninguém a Jesus.


No entanto, há também uma leitura vocacional profunda neste ensinamento. O Catecismo da Igreja Católica (1618) recorda que alguns são chamados a viver esse desapego de forma radical, através da virgindade ou da vida consagrada. Trata-se de uma resposta total a Cristo, que se torna o único centro da existência. Estes homens e mulheres, ao renunciarem ao matrimónio e à posse, são sinal vivo do Reino e da primazia absoluta de Deus. Por isso, embora a passagem seja exigente, refere-se à vocação cristã: todos somos chamados a seguir Jesus com liberdade interior e alguns, de modo especial, a imitá-l’O na entrega total e exclusiva. 

A pergunta final é pessoal: como posso, eu, viver este espírito de renúncia, para amar a Cristo acima de tudo?

Texto baseado em “Mass Readings Explained – Year C – 23th Sunday Ordinary time” por Brant Pitre

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