
Por: Teresa Alves
Primeira Leitura: Deuteronómio 30:10-14
Salmo: 68 ou 18
Segunda Leitura: Colossenses 1:15-20
Evangelho: Lucas 10:25-37
O 15º Domingo do Tempo Comum traz-nos uma das parábolas mais famosas do Evangelho segundo São Lucas, a parábola do Bom Samaritano. Esta é uma das parábolas que só se encontra no Evangelho de Lucas e é apresentada no contexto de uma pergunta feita por um doutor da Lei a Jesus, sobre o que deve fazer para herdar a vida eterna.
É uma passagem com muito para reflectir. Diz que um doutor da Lei se levantou para pôr Jesus à prova. A palavra grega utilizada é nomikos, que significa literalmente um erudito ou doutor da Lei. Por "Lei" entende-se a Torá, a Lei Hebraica, especialmente contida nos primeiros cinco livros da Bíblia (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio; o Pentateuco). Ou seja, este homem, que era um perito nas Escrituras Judaicas e um mestre da Lei, pôs Jesus à prova. Porque, afinal, quem era Jesus? Apenas um carpinteiro da Galileia. No entanto, todas estas pessoas estavam a segui-l’O. Jesus ensinava-as sobre as Escrituras e sobre como viver. Ora, São Lucas diz-nos que este mestre da Lei questiona Jesus, não porque quer realmente saber a resposta, mas porque quer testá-l’O para ver o que Ele sabe.
Porém, Jesus devolve-lhe a questão: “O que está escrito na Lei? Como lês tu?” É uma resposta interessante. O que quer dizer “Como lês?”? Bem, é crucial relembrar que a interpretação das Escrituras era – e é – tão importante quanto a própria letra da Lei. A Torá (ou a Lei, ou as Escrituras) era intensamente debatida pelos estudiosos no século I – tal como ainda hoje o é. Alguns estudiosos pensam de uma maneira, outros de outra. Porquê? Porque a linguagem humana está aberta a várias interpretações, e isso é especialmente verdade no texto hebraico, uma vez que no hebraico antigo não havia vogais escritas. Quer dizer, o hebraico antigo era sem pontuação e sem vogais, ou seja, apenas uma série de consoantes. Por isso podia haver debate sobre como interpretar uma passagem consoante a forma como era lida. Podiam inserir-se determinadas vogais, conferindo-lhe um certo significado, ou outras, mudando-lhe o sentido. Podia até ler-se o texto em voz alta de formas diferentes.
Portanto, quando Jesus pergunta “Como lês o texto?”, está, na verdade, a perguntar: “Como o interpretas?”. Jesus está, assim, a falar com este doutor da Lei utilizando a linguagem e método próprios da tradição judaica. Ora, o doutor da Lei responde a Jesus citando dois textos do Antigo Testamento.
Ele diz: "Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, toda a tua alma e todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo." Esta passagem é significativa, pois mostra que estes dois mandamentos – amar a Deus e amar o próximo – não foram invenção de Jesus. De facto, por vezes os cristãos presumem que os dois maiores mandamentos são uma novidade trazida por Jesus. Mas não, fazem parte do judaísmo antigo. Estão no cerne do Antigo Testamento, no Pentateuco.
O mandamento de amar a Deus com todo o coração, alma e mente vem do livro do Deuteronómio 6. É uma oração judaica fundamental, recitada várias vezes ao dia, chamada Shema, da palavra hebraica que significa “escuta”: “Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.” O segundo mandamento – “amarás o teu próximo como a ti mesmo” – vem de Levítico 19.
Portanto a pergunta que surge de seguida é: “E quem é o meu próximo? Quem está incluído na categoria de ‘próximo’?” Note-se como o doutor da Lei cita apenas a segunda metade do versículo em causa: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Levítico 19:18) O versículo completo diz: “Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” Portanto, nesse contexto, “próximo” parece referir-se apenas aos “filhos do teu povo”, ou seja, outros israelitas. Assim sendo, compreendemos o contexto em que, no Evangelho, o doutor da Lei pergunta a Jesus: “Quem é o meu próximo?”.
Ora, Jesus responde-lhe com a parábola do Bom Samaritano. Quer dizer, através da parábola do Bom Samaritano, Jesus está a responder a uma questão exegética específica sobre o amor ao próximo no livro do Levítico.
Aqui está em causa um homem que descia de Jerusalém para Jericó, e que, por isso mesmo, parece ser judeu, uma vez que está a descer da capital religiosa dos judeus, onde está o Templo (Jerusalém), para uma cidade judaica (Jericó). Acontece que, pelo caminho, é atacado por alguns salteadores, que o despem e espancam. Por acaso, três pessoas passam por ele na estrada.
O primeiro é um sacerdote judeu. No século I, isso significava um descendente de Aarão, irmão de Moisés, consagrado para oferecer sacrifícios no Templo de Jerusalém. A segunda pessoa mencionada é um levita – muitas vezes confundimos levitas com sacerdotes, mas havia diferença. O levita era diferente de um sacerdote porque, apesar de pertencer à mesma tribo, à tribo de Levi, o levita não era membro da família de Aarão. O que significa que um levita podia ajudar no templo (limpar os utensílios, manter o fogo aceso no altar, etc.), mas não podia oferecer sacrifícios nem entrar no lugar santo para oferecer incenso, como, e.g., Zacarias faz no início do Evangelho de S. Lucas. Ou seja, todos os sacerdotes eram levitas, mas nem todos os levitas eram sacerdotes. É de algum modo semelhante ao que se passa hoje entre diáconos e padres na Igreja: o diácono assiste e auxilia, mas só o padre celebra a Missa.
Ora, tanto o sacerdote como o levita passam ao lado do homem ferido e seguem o seu caminho. A terceira pessoa que surge não é sacerdote, nem levita, nem sequer judeu, mas sim um samaritano, ou seja, alguém fora do povo de Israel, um gentio. Os samaritanos eram descendentes dos conquistadores assírios que, no século VIII a.C., invadiram o reino do Norte de Israel, exilaram as dez tribos do Norte, ocuparam a terra de Samaria e estabeleceram o seu templo no Monte Gerizim. Criaram o seu próprio culto onde ofereciam sacrifícios ao Deus de Israel, mas estavam fora da aliança e eram odiados pelo povo judeu.
De facto, as parábolas de Jesus não são apenas historiazinhas simples que "até uma criança pode entender". Há quase sempre uma reviravolta. E aqui a reviravolta é que este samaritano, que seria normalmente odiado ou até temido pelo público judeu de Jesus, é quem mostra compaixão e misericórdia para com o homem assaltado no caminho para Jericó.
Um sacerdote, conhecedor da lei, vê o seu próprio irmão, um judeu, deitado ao lado da estrada e passa ao largo, sem ajudar. Um levita, que também se esperaria que conhecesse a lei – no livro de Neemias, os levitas explicam a lei ao povo durante a pregação –, passa também ao lado. Mas depois vem um samaritano – que, por sinal, também possui a Lei (os cinco livros de Moisés), muito embora não fosse considerado um verdadeiro judeu ou israelita e que até era odiado pelos judeus – e cuida daquele homem, levando-o inclusive para uma estalagem. Note-se, não só cuida dele, como ainda paga do seu próprio bolso ao estalajadeiro. Então Jesus pergunta ao doutor da lei: “qual destes três foi o próximo daquele homem?” E o doutor responde correctamente: “o que teve misericórdia dele.”
De facto, a misericórdia é um tema muito importante no Evangelho de São Lucas. Há até quem o chame de “Evangelho da misericórdia”, uma vez que Jesus está constantemente a enfatizar a necessidade de compaixão pelos outros. O melhor exemplo disto é o Sermão onde Jesus diz: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”, o que, no contexto, significa: “Amai os vossos inimigos”. Jesus coloca lado a lado o amor aos inimigos e a compaixão. Ora, com esse sermão em pano de fundo, o que é que Jesus está a ensinar a este doutor da lei? Está a responder à sua própria pergunta: “Como interpretar Levítico 19? Será que o mandamento de ‘amar o próximo’ se refere apenas aos meus compatriotas israelitas? Ou inclui também os meus inimigos?” E Jesus é muito claro: o samaritano, ao demonstrar compaixão para com este judeu que descia de Jerusalém para Jericó, revela uma misericórdia superior. Ele está a amar o seu próximo como Deus Pai ama a humanidade. Está a amar até mesmo aqueles que, segundo os padrões da época, seriam considerados seus inimigos.
É essa a mensagem essencial da parábola. Olhemos agora para a leitura do Antigo Testamento, Deuteronómio 30:10-14:
“se escutares a voz do SENHOR, teu Deus, e guardares os seus mandamentos e os seus preceitos, escritos neste livro da Lei, e se voltares de novo para o SENHOR, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma. Na verdade, esta Lei, que hoje te prescrevo, não é muito difícil para ti nem está fora do teu alcance. Não está no céu, para se dizer: 'Quem subirá por nós até ao céu e no-la irá buscar para a escutarmos e praticarmos?' Não está tão pouco do outro lado do mar, para se dizer: 'Quem atravessará o mar e no-la irá buscar para a escutarmos e praticarmos?' A Lei está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares.”
Temos aqui a preparação para o Evangelho. Pode parecer impossível… Como é que Jesus espera que eu ame os meus inimigos? Aqui é importante compreender que Jesus não está a pedir que sintamos coisas boas pelos nossos inimigos. Está antes a pedir que façamos o bem aos nossos inimigos, que é algo diferente, e que está ao nosso alcance. Ou seja, precisamente o que o Bom Samaritano fez. É por isso que dizemos que ele é bom. De facto, não sabemos como é que ele se sentia em relação ao homem, mas sabemos que o amou ao mostrar compaixão e misericórdia, ao cuidar dele, ao derramar óleo nas suas feridas e ao pagar do seu próprio bolso, i.e., sacrificando os seus bens, para amar o próximo como a si mesmo.
Para concluir, deixamos duas citações relevantes.
Uma do ponto 1825 do Catecismo: “Cristo morreu por amor a nós, quando ainda éramos ‘inimigos’ (Rm 5,10). O Senhor pede-nos que amemos como Ele, até os nossos inimigos, que nos façamos próximos dos mais afastados, e que amemos as crianças e os pobres como o próprio Cristo.” 1
Portanto, se hoje perguntássemos o que significa amar o meu próximo, a resposta seria: amar os inimigos, tal como Cristo nos amou.
Santo Agostinho, por sua vez, num dos seus sermões oferece uma interpretação alegórica muito famosa desta parábola. Para ele o Bom Samaritano representa Cristo, e o homem espancado e deixado meio morto representa a humanidade. Eis as palavras de Santo Agostinho:
“Toda a raça humana é, como vês, aquele homem que jazia na estrada,
deixado ali pelos salteadores, meio morto, ignorado pelo sacerdote e pelo levita que passaram ao lado, mas socorrido pelo Samaritano que parou para cuidar dele.…
Neste Samaritano, o Senhor Jesus Cristo quis que O reconhecêssemos a Ele próprio.” 2
O que Agostinho está aqui a dizer é de uma grande beleza. Jesus é Aquele que nos mostra o verdadeiro amor ao próximo, quando sobe ao Calvário por nossa causa, para nos salvar do pecado e da morte e restaurar-nos a uma vida nova. Por causa do nosso pecado, a humanidade tornou-se como aquele homem meio morto à beira do caminho, e Cristo, através dos sacramentos, derrama óleo e vinho sobre as nossas feridas, lava-nos, purifica-nos e cura-nos. E, pela sua caridade para connosco, pela sua compaixão por toda a humanidade, restaura-nos à vida e mostra-nos o que realmente significa amar o próximo como a nós mesmos.
1 Catecismo da Igreja Católica 1825
2 Sermões de Santo Agostinho, Sermão 171.2