Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria

Por: Miguel Simões

Primeira leitura: Apocalipse 11:19,12,1-6a,10ab
Salmo: 45:10, 11, 12, 16
Segunda leitura: 1 Coríntios: 15, 20-27
Evangelho: Lucas 1: 39-56



1. Maria, nova Arca da Aliança

A Igreja celebra a Solenidade da Assunção da Santíssima Virgem Maria, em corpo e alma, ao Céu. É sem dúvida uma grande festa, mas é também uma daquelas festas em que não é imediatamente evidente a razão pela qual as respectivas leituras são escolhidas; a menos, é claro, que se leiam à luz do Antigo Testamento e da tradição viva da Igreja.

Estamos a celebrar a Solenidade da Assunção de Maria ao Céu; todavia não é o relato desse acontecimento que escutamos nas leituras. Em vez disso, a Igreja dá-nos o Evangelho da Visitação de Maria a Isabel:

Por aqueles dias, Maria pôs-se a caminho e dirigiu-se à pressa para a montanha, a uma cidade da Judeia. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino saltou-lhe de alegria no seio e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. Então, erguendo a voz, exclamou: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o Fruto do teu ventre. E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor? Pois, logo que chegou aos meus ouvidos a tua saudação, o menino saltou de alegria no meu seio. Feliz de ti que acreditaste, porque se vai cumprir tudo o que te foi dito da parte do Senhor.» Maria disse, então: «A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da Sua serva. De hoje em diante, me chamarão bem-aventurada todas as gerações. O Todo-poderoso fez em mim maravilhas. Santo é o Seu nome. A Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que O temem. Manifestou o poder do Seu braço
e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel, Seu servo, lembrado da Sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre.» Maria ficou com Isabel cerca de três meses. Depois regressou a sua casa.”

Poderia explicar-se a escolha desta passagem do Evangelho simplesmente porque, como não há relato da Assunção de Maria nos Evangelhos, a Igreja escolheu uma outra passagem mariana qualquer. Como se sabe, os Evangelhos contêm apenas algumas histórias de Maria e estão principalmente associadas à Natividade. Essa é a explicação fácil ou simplista para esta escolha. Contudo, estudando os escritos dos antigos Padres da Igreja e de escritores contemporâneos sobre a teologia mariana da Igreja, percebemos que não é apenas Jesus que foi prefigurado pelo Antigo Testamento e depois revelado no Novo, mas também Nossa Senhora. E, de facto, o relato da visita de Maria a Isabel é um texto que foi desde sempre lido tipologicamente, i.e., não exclusivamente como um relato da visitação, mas como revelador de que Maria não é tão somente Mãe de Jesus, como também a verdadeira Arca da Aliança, a nova Arca da Aliança.

Brant Pitre, por exemplo, no seu livro sobre as Raízes Judaicas de Nossa Senhora, refere como as prefigurações de Eva, da Arca, da Rainha-Mãe dos reis da dinastia de David, e outras, se cumprem na vida de Maria, conforme os relatos nos Evangelhos e restante Novo Testamento. Olhando para a Visitação de Maria a Isabel à luz do Antigo Testamento, i.e., comparando-a com o relato de David trazendo a Arca da Aliança (a caixa de ouro que continha as tábuas dos Dez Mandamentos e que era considerada a morada sagrada de Deus no Santo dos Santos no tabernáculo) para Jerusalém (2 Sam 6) verificamos vários paralelos e percebemos, como se tornará evidente mais adiante, que Lucas está deliberadamente a estabelecer uma ligação entre a visita de Maria a Isabel e o referido episódio davídico. Verifiquemos, então, estes paralelos.


2.
A Visitação e David

No Antigo Testamento, no livro do Êxodo 40, relata-se como uma nuvem de glória descia e cobria (episkiazó) a Arca da Aliança. No Novo Testamento, diz-se que o Espírito Santo desce sobre Maria, e o poder do Altíssimo “cobre-a” (episkiazó, o mesmo verbo) na Anunciação. Para além disto, no 2º livro de Samuel, capítulo 6, David “levantou-se e foi” para a região montanhosa de Judá para trazer a Arca de Deus para Jerusalém. No Novo Testamento, Lucas 1 diz que “Maria levantou-se e foi” para a região montanhosa de Judá para entrar na casa de Isabel. Terceiro paralelo: quando David entra na presença da Arca, ele exclama: “Como pode a Arca do Senhor vir até mim?” (2 Samuel 6:9). No Novo Testamento, quando Maria entra na presença de Isabel saudando-a, esta exclama: “E por que me é concedido que a mãe do meu Senhor venha até mim?” (Lucas 1:43). Nota-se, então, que as palavras “mãe do meu Senhor” tomam o lugar de “Arca da Aliança” nas palavras de David. Uma quarta ligação: quando David está na presença da Arca, diz-se que ele saltou diante da Arca, quando ela foi trazida, soltando gritos (2 Sam 6). No Evangelho de Lucas, capítulo 1, diz-se que João Baptista saltou no ventre de Isabel ao som da voz de Maria, e que Isabel gritou com um alto grito. O padre Pablo Gadenz, padre contemporâneo e estudioso da Bíblia, mostrou no seu comentário sobre Lucas que a linguagem de gritos usada para descrever Isabel é algo ligado unicamente à Arca da Aliança. Normalmente não pensamos em Isabel a gritar, mas antes dizendo serenamente: “Bendita és entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre”. Contudo, de acordo com Lucas, Santa Isabel grita. E grita porque está cheia do Espírito Santo. É uma exclamação (!), assim como David exclamou na presença da Arca. Por último, repare-se como no Antigo Testamento a Arca da Aliança permaneceu na região montanhosa, na casa de Obed-Edom, por “três meses”, precisamente do mesmo modo que no Novo Testamento Maria permanece na região montanhosa de Judá, na casa de Isabel, por “três meses”. Ora, o que Lucas obviamente nos quer dizer é que Maria permaneceu na casa de Isabel até ao nascimento de João, uma vez que nos disse anteriormente que Isabel estava grávida de seis meses. Então porque afirma ele “três meses” em vez de apenas “até o nascimento da criança”? Bem, os estudiosos argumentam que Lucas fá-lo a fim de ecoar de modo ainda mais directo o relato de David trazendo a Arca para Jerusalém. De facto, se calhar, se tivesse dito apenas “Maria permaneceu com sua prima até o nascimento de João”, teríamos perdido a alusão, ou duvidado da intenção deliberada de estabelecer um paralelo entre os dois episódios.

Ora, se apenas um desses paralelos estivesse presente, já seria impressionante. O facto de existirem cinco paralelos revela, sem grandes dúvidas, que Lucas está deliberadamente a aludir ao relato da Arca da Aliança no Antigo Testamento, a fim de mostrar que, tendo em conta os paralelos e dado que o corpo de Maria se tornou a morada do Senhor, isso faz desta a nova Arca da Aliança. Quer dizer, Maria é a verdadeira morada de Deus na Terra. O seu corpo é santo e, na verdade, o seu corpo é mais santo do que a Arca, porque a Arca da Aliança era apenas uma caixa de ouro que continha tábuas de pedra, ao passo que o corpo de Nossa Senhora é um templo vivo para a Palavra viva de Deus feito carne. E relembre-se: isto através do Espírito Santo que a cobriu com a Sua sombra na Anunciação, tal como cobriu a Arca quando esta ficou concluída.

Muito interessante, mas agora perguntemo-nos o que é que isto tem que ver com a Assunção de Maria. Já se percebeu que Maria é a nova Arca da Aliança, mas de que modo é que isso se relaciona com a festa de hoje?


3. A Arca da Aliança no Apocalipse

Se repararmos, a primeira leitura não é do Antigo Testamento; é do livro do Apocalipse, capítulos 11 e 12. Escrito por João Evangelista, esta é a sua visão da Arca da Aliança celestial. Contextualizando, no judaísmo do primeiro século, todos entendiam que depois de David ter colocado a Arca no templo (e Salomão ter construído o templo), a Arca permaneceu lá por centenas de anos até o século VI a.C. No século VI, os babilónios vieram e destruíram o templo. Queimaram Jerusalém, e de acordo com o livro de Macabeus (2 Macabeus 2) antes do templo ser destruído, o profeta Jeremias, que era sacerdote, tirou a Arca da Aliança do templo, porque sabia que os babilónios estavam a caminho para o destruir, e levou-a e escondeu-a numa caverna no Monte Nebo,.. E em 2 Macabeus 2 Jeremias diz que a localização da Arca permaneceria escondida até que Deus revelasse a Sua misericórdia e até que a nuvem de glória descesse novamente do Céu.

Ora, no tempo de Jesus tais tradições e profecias sobre a Arca da Aliança eram bem conhecidas, sabendo evidentemente que não havia Arca no templo. Quer dizer, que no templo reconstruído após o exílio babilónico estava a faltar algo não de menor importância: a Arca da Aliança. Para termos uma noção: seria como se hoje na Basílica de São Pedro, em Roma, não houvesse sacrário, nem Santíssimo Sacramento. Assim sendo, continuaria a ser um lugar sagrado, um lugar bonito, mas estaria vazio daquilo que o torna mais sagrado: a presença real de Jesus na Eucaristia. Ora, o mesmo, mutatis mutandis, se aplicava ao templo. Um lugar sagrado, onde se ofereciam sacrifícios, todavia sem a presença da Arca.

Do mesmo modo, todos os judeus sabiam igualmente que na época do Cristo a Arca voltaria, uma vez que de acordo com a profecia de Jeremias a sua localização seria revelada. No entanto, por agora, ninguém sabia exactamente o que lhe tinha acontecido, dado que quando Jeremias a coloca na caverna, a localização desta última desaparece. Ou seja, as pessoas não conseguiram encontrá-la: desapareceu milagrosamente. Mantinha-se, não obstante, a expectativa de que um dia a localização da Arca seria revelada.

Em Apocalipse 11, João vê onde está a Arca: a sua localização é-lhe revelada. E a localização dada não é a da Arca terrena do Monte Nebo, mas sim a de uma Arca no Céu: templo de Deus abriu-se no Céu e a arca da aliança foi vista no seu templo. (Apocalipse 11:19) Para entender este versículo, é necessário compreender que no judaísmo antigo havia a ideia de que o templo terrestre era uma espécie de réplica ou analogia do verdadeiro templo que estava no Céu. E, assim como no templo terrestre a Arca da Aliança está dentro do Santo dos Santos, quando João diz que vê o templo aberto, o que ele realmente vê são as portas do templo abertas, vendo todo o caminho até ao Santo dos Santos, onde, lá dentro, se encontra a Arca. Vinque-se: não o templo terreno; o templo no Céu. É fascinante como, assim que João vê a Arca no templo celeste, de repente a imagem muda e ele passa a ver uma mulher no Céu, quase como se as duas imagens se sobrepusessem uma à outra. É algo que acontece frequentemente no livro do Apocalipse, onde S. João utiliza dois símbolos para descrever uma única realidade. Neste sentido, os estudiosos sugerem que a Arca e a mulher são apenas duas maneiras de falar sobre uma única realidade. Depois de ver a Arca no Céu, no templo, de repente ele vê uma mulher no Céu:

"
Depois, apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e gritava com as dores de parto e o tormento de dar à luz.
Apareceu ainda outro sinal no céu: era um grande dragão de fogo com sete cabeças e dez chifres. Sobre as cabeças tinha sete coroas e, com a sua cauda, varreu a terça parte das estrelas do céu e lançou-as à terra. Depois colocou-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando ele nascesse. Ela deu à luz um filho varão. Ele é que há-de governar todas as nações com ceptro de ferro. Mas o filho foi-lhe arrebatado para junto de Deus e do Seu trono. E a Mulher fugiu para o deserto onde Deus lhe preparou um lugar, de modo a não lhe faltar aí o alimento durante mil duzentos e sessenta dias”

Depois, salta para o versículo 10:

Então ouvi uma voz forte no céu que aclamava: «Eis que chegou o tempo da salvação, da força e da realeza do nosso Deus e do poder do Seu Cristo! Porque foi precipitado o Acusador dos nossos irmãos, o que os acusava diante de Deus, dia e noite...”

Ora, por que razão escolher esta como primeira leitura para a festa da Solenidade da Assunção? Se Maria é a verdadeira Arca da Aliança na Terra, então quando João tem esta misteriosa visão apocalíptica da Arca no Céu e de uma mulher no Céu, que é a mãe do Messias e que usa uma coroa de doze estrelas, é claro que o que vê é uma rainha celestial. Portanto, desde os tempos antigos que esta visão tem sido interpretada como uma visão de Maria no Céu. No entanto, como já vimos, não apenas enquanto mãe do Messias, como também como Arca da Aliança celestial. Se pensarmos desta forma, i.e., se o corpo de Maria é a morada de Deus na Terra, se o corpo de Maria é a verdadeira Arca da Aliança, então é adequado que, no fim da sua vida, esse corpo, essa Arca sagrada, não permanecesse na Terra num túmulo humano, mas antes fosse levado para o seu lugar de direito no Santo dos Santos celestial, no templo celestial de Deus. É, pois, esta a razão para se escolher a visão de São João da Arca da Aliança celestial na festa da Assunção de Maria.

Note-se: a Arca da Aliança não é apenas a sua alma; é também o seu corpo. Do mesmo modo, todos nós, cristãos comuns, quando morremos esperamos que a nossa alma entre no Céu e que, no último dia, recebamos os nossos corpos na ressurreição dos mortos. A diferença com Nossa Senhora prende-se, como a Igreja ensina, com o seu dom singular. Quer dizer, uma vez que o seu corpo era a Arca da Aliança na Terra, é apropriado também o seu corpo fosse desde já levado para o Céu para habitar no Santo dos Santos celestial, no templo celestial, com Cristo por toda a eternidade. Em suma, o que João nos dá nesta visão é uma descrição apocalíptica de Maria que a revela como (entre outras coisas) Rainha-Mãe do reino de Deus e verdadeira Arca da Aliança.


4. Maria, Rainha-Mãe

Tornemos agora a nossa atenção para o salmo responsorial. O salmo 45 é um famoso salmo de entronização do Antigo Testamento, no qual o salmista se dirige tanto ao rei quanto à rainha. Diz o salmo 45:6-10:

"
As tuas flechas são penetrantes, a ti se submetem os povos, perdem a coragem os inimigos do rei. O teu trono, como o de um deus, é eterno e duradouro, um ceptro de justiça é o teu ceptro real. Amas a justiça e odeias a injustiça; por isso, Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo da alegria, preferindo-te aos teus companheiros. As tuas vestes exalam mirra, aloés e cássia. Nos palácios de marfim alegram-te os sons da lira.
Entre as damas da tua corte há filhas de reis, à tua direita está a rainha ornada com ouro de Ofir.”

Este salmo é dirigido a um rei israelita, provavelmente no dia da sua entronização. Se repararmos, descreve o facto de que à sua direita está a rainha. Ora, esta não é a sua noiva, não é a sua esposa. É, provavelmente, a rainha-mãe. Se olharmos para o reino davídico, é muito comum a rainha não ser a esposa do rei, uma vez que a mãe do rei também é rainha: rainha-mãe. Vemos isto nos livros dos Reis, onde Salomão, quando é coroado rei, traz um trono, coloca-o à sua direita e faz com que a sua mãe se sente no trono como rainha, porque ela é a rainha-mãe. Neste caso, o que se mostra é que o rei e a rainha estão juntos na sua entronização. Desde os tempos antigos que este salmo tem sido interpretado como profecia messiânica sobre Jesus, ou seja, não apenas sobre David, não apenas sobre os reis de Israel, mas também sobre Cristo. Ora, assim como Cristo cumpre este salmo sobre um rei ungido que se senta no seu trono, também Maria cumpre este salmo, esta descrição da rainha-mãe. Mas onde está o trono de Jesus? Não está em Jerusalém. Não está na Terra. É um trono celestial que Ele monta quando ascende ao Céu. Então, se Ele é o rei e ascende ao Céu para se sentar no Seu trono, como é que a Rainha-Mãe ficará à Sua direita? Como é que Maria cumpre este salmo? Ao ser assunta ao Céu, em corpo e alma, e ficar à direita do seu Filho, o Rei. Então, o que a Igreja faz nesta festa, quando olhamos para o Antigo Testamento à luz do Novo, e para o Novo à luz do Antigo, é dar-nos uma espécie de tapeçaria teológica através das várias passagens onde Maria nos é revelada como a verdadeira Arca da Aliança (Lucas 1) e apontada como a mulher e rainha que está no Céu (Apocalipse 11, 12 e Salmo 45).


5. Conclusão

Neste sentido, compreendemos de que modo é que as leituras do dia apontam para o mistério bíblico da Assunção corporal de Maria ao Céu. Ou seja, apesar de não termos uma descrição bíblica da Assunção de Maria, do evento, temos a revelação das Escrituras sobre a verdade de Nossa Senhora no Céu como Rainha-Mãe e como a verdadeira Arca da Aliança. Só há um lugar adequado para a Arca, e não é em algum túmulo em Jerusalém. É no Santo dos Santos celestial. Só há um lugar adequado para a Rainha dos Céus, e não é na cidade terrena de Jerusalém. É no reino celestial de Deus.

Texto baseado em “Mass Readings Explained – Year C – Solemnity of the Assumption of the Blessed Virgin Mary” por Brant Pitre

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