
Por: Isabel Horta Correia e Teresa Alves
Primeira Leitura: Isaías 66:18-21
Salmo: 117:1, 2
Segunda Leitura: Hebreus 12:5-7, 11-13
Evangelho: Lucas 13:22-30
Neste Domingo, na leitura do Evangelho é feita a Jesus uma pergunta muito profunda sobre o número dos que se salvam. Salvar-se-ão muitas pessoas ou salvar-se-ão muito poucas?
Naquele tempo, Jesus dirigia-Se para Jerusalém e ensinava nas cidades e aldeias por onde passava. Alguém Lhe perguntou: «Senhor, são poucos os que se salvam?» Ele respondeu: «Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque Eu vos digo que muitos tentarão entrar sem o conseguir. Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta, vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo: ‘Abre-nos, senhor’; mas ele responder-vos-á: ‘Não sei donde sois’. Então começareis a dizer: ‘Comemos e bebemos contigo e tu ensinaste nas nossas praças’. Mas ele responderá: ‘Repito que não sei donde sois. Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade’. Aí haverá choro e ranger de dentes, quando virdes no reino de Deus Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas, e vós a serdes postos fora. Hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus. Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos».
A pergunta feita a Jesus, “Senhor, são poucos os que se salvam?”, não surge do nada, inscreve-se num contexto teológico e cultural próprio do século I d.C., onde o judaísmo alimentava intensos debates sobre a salvação.
A preocupação fundamental não era apenas saber quem seria salvo, mas quantos seriam salvos — mais especificamente, quantos israelitas, descendentes das doze tribos, participariam no “mundo que há-de vir”, expressão frequente na escatologia judaica antiga para designar a nova criação prometida por Deus.
Antigos textos rabínicos, como a Mishnah1, compilada cerca do ano 200 d.C., mas portadora de tradições muito anteriores e algumas contemporâneas de Jesus, revelam-nos a existência dessa controvérsia. Algumas correntes defendiam que todos os israelitas teriam uma parte nesse mundo vindouro (Is 60:21) enquanto outras afirmavam que apenas um remanescente, um resto justo seria salvo, excluindo os pecadores reincidentes, como a geração ímpia do dilúvio, os homens de Sodoma, ou mesmo as dez tribos perdidas de Israel.
Esta tensão entre universalismo, que defendia que todos os judeus se salvariam, e exclusivismo, que defendia que apenas alguns se salvariam, também transparece nos escritos proféticos, como em Isaías, onde se anuncia que “ainda que o teu povo, ó Israel, fosse tão numeroso como a areia do mar, só um resto dele voltará” (Is 10:22). A imagem deste resto ou remanescente torna-se, assim, central para a teologia judaica do tempo de Jesus.
Neste cenário, a pergunta dirigida a Jesus é muito mais do que uma mera curiosidade: é um convite a posicionar-se no seio de um debate teológico bem conhecido pelos seus contemporâneos. Haverá salvação para todos os que pertencem ao povo da aliança? Haverá salvação para todos os que pertencem ao povo de Israel? Ou apenas para os que verdadeiramente vivem segundo a justiça de Deus? A resposta de Jesus, em Lucas 13, não se fixa em números, “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque Eu vos digo que muitos tentarão entrar sem o conseguir.” Literalmente, no grego, o que Jesus diz, é que muitos se esforçarão para entrar, mas não serão suficientemente fortes. Jesus utiliza o verbo ischyō, que significa "ser forte" ou "ter força suficiente". A imagem evocada é a de uma porta estreita, talvez a entrada fortificada de uma cidade antiga, diante da qual multidões se comprimem, lutando por um lugar, debatendo-se umas com as outras na ânsia de passar.
Contudo, nem todas conseguirão. A resposta de Jesus, embora velada, é clara: muitos tentarão, mas poucos lograrão. É uma resposta sóbria e exigente, que ressoa com o ensinamento dos profetas: ainda que Israel seja tão numeroso como a areia do mar, apenas alguns voltarão. A salvação, neste cenário, não é garantida pelo número nem pela pertença, mas sim pela fidelidade e pela perseverança. A porta é estreita e a travessia, reservada aos que verdadeiramente a desejam e se dispõem a enfrentá-la com coração firme.
Jesus sublinha a urgência da conversão e a exigência de entrar pela “porta estreita” — sinal de que, para Ele, a salvação não é uma garantia étnica ou religiosa, mas uma realidade profundamente ligada à resposta pessoal ao chamamento divino.
Jesus conta então uma parábola, ou melhor, duas interligadas, para ilustrar a realidade do Reino de Deus. Primeiro, a do dono da casa que se levanta e fecha a porta àqueles que dizem conhecê-lo. Quando chegam, dizendo: “Comemos e bebemos contigo”, o dono responde: “Não sei donde sois. Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade’”. Em seguida, a imagem de um grande banquete, onde os patriarcas e profetas estão à mesa, mas alguns que presumiam estar dentro serão lançados fora.
A imagem é profundamente simbólica: a casa representa o Reino, o banquete a salvação, o Céu, e o dono da casa é o próprio Deus. Os que ficam de fora não são desconhecidos no sentido mundano, até ouviram Jesus pregar, até partilharam refeições com Ele. Mas faltava-lhes algo essencial: uma vida transformada, marcada pela obediência e comunhão. O que os exclui não é a ignorância, mas o pecado. É possível estar próximo de Jesus exteriormente e, ainda assim, não ser conhecido por Ele interiormente. Não basta ouvir falar de Jesus e sobre Jesus, é preciso que Ele nos conheça e que lutando por deixar a vida de pecado entremos numa verdadeira comunhão com Ele. Para entrarmos no Seu banquete, na vida eterna, temos de ser verdadeiramente “conhecidos de Jesus”.
Aqui ecoam fortemente as palavras dos profetas do Antigo Testamento. Isaías, por exemplo, descreve um banquete messiânico para todos os povos, “com vinhos velhos e carnes gordas e saborosas” (Is 25,6), mas também denuncia os que se afastam da justiça. E a advertência de S. João Batista ressoa com clareza: “Não vos iludais a vós mesmos: ‘Temos por pai a Abraão!’. Deus pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão” (Mt 3,9), denunciando a falsa segurança religiosa baseada apenas na herança, na tradição, nas aparências.
Jesus retoma esta mesma advertência com intensidade: não basta pertencer ao povo eleito, ouvir a Palavra ou até realizar actos em nome de Deus. O que conta é viver segundo a vontade do Pai. O verdadeiro critério da salvação, para todos os homens, é a comunhão com Cristo, marcada pela fidelidade e pela transformação da vida.
Este alerta, como todo a mensagem de Jesus, permanece actual. Podemos cair na mesma presunção de que por termos sido batizados, por participarmos na Missa ao Domingo, isso nos coloca automaticamente no caminho da salvação. O Evangelho lembra-nos de que apesar da salvação ser dom gratuito de Deus, exige a nossa resposta: uma conversão contínua e uma vida nova.
É por isso que Jesus diz: “Alguns dos últimos serão os primeiros, e alguns dos primeiros serão os últimos”. Uma reviravolta divina está em curso. O Reino abre-se a todos os povos, “do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul”, mas fecha-se àqueles que, mesmo próximos exteriormente, não se deixam renovar por dentro.
Jesus afirma que nem todos os que esperam entrar no Seu Reino o farão, e adverte que muitos serão deixados de fora, onde haverá "choro e ranger de dentes", uma clara referência à Geena, ou seja, o lugar dos condenados.
Jesus apresenta aqui dois destinos escatológicos: a alegria do banquete no Reino de Deus, reservado aos que O conhecem e fazem a vontade do Pai; a exclusão para fora do Reino, para os “obreiros da iniquidade”, os pecadores.
Neste contexto, Jesus inverte as expectativas religiosas da época: muitos dos “primeiros” (os judeus étnicos) poderão ser excluídos, enquanto os “últimos” (os gentios, que não pertencem ao povo de Israel) poderão serão admitidos no banquete do Reino.
O Reino de Deus não está reservado apenas aos judeus por herança, mas será acessível também aos gentios convertidos. Jesus usa imagens fortes não por crueldade, mas por misericórdia. Ele quer que tomemos a sério o que está em jogo: a vida eterna.
Nesta pequena passagem do Evangelho, Jesus anuncia ainda que pessoas virão “do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul”, uma imagem de universalidade do Seu povo e do Seu Reino. A consciência da universalidade do povo de Deus, de que a salvação não está limitada a Israel, mas se destina a todos os povos, começa a vislumbrar-se já nos tempos do rei Salomão. Durante a dedicação do templo que construiu em Jerusalém, Salomão eleva uma belíssima oração profética: pede a Deus que também ouça as súplicas dos estrangeiros que, vindos de longe, se dirigirem ao templo por amor ao nome do Senhor (1 Rs 8,41-43). Salomão antecipa a ideia de um Templo que não será apenas casa de oração para Israel, mas para todos os povos da terra.
Mais tarde, por intermédio de Isaías (Is 66) o próprio Deus declara:
“Eu virei para reunir os povos de todas as línguas; todos virão e contemplarão a minha glória. Colocarei no meio deles um sinal; enviarei alguns dos seus sobreviventes às nações: a Társis, a Pul e a Lud, especialistas do arco, a Tubal, à Grécia e às ilhas longínquas, que nunca ouviram falar de mim, nem viram a minha glória. Eles revelarão a minha glória a estas nações. E de todos estes países trarão os vossos irmãos, como se se tratasse de uma oferenda ao Senhor. Virão a cavalo, em carros, em liteiras, em mulos e em camelos, até ao meu monte santo de Jerusalém - diz o Senhor - tal como os filhos de Israel trazem as suas oferendas em vasos puros à casa do Senhor.
Escolherei de entre eles sacerdotes e levitas - diz o Senhor.” (Is 66:18-21).
E claro, não é coincidência que esta seja precisamente a leitura do Antigo Testamento que nos é proposta para ser lida na Missa deste Domingo. Através de Isaías, o Senhor está a anunciar que no futuro, o remanescente dos justos de Israel irá pelos quatro cantos do mundo anunciar a Sua glória e que trarão os israelitas (“irmãos”) dispersos 2 como oferenda ao Senhor. Por outro lado, alguns de entre os povos gentios, outrora considerados estrangeiros à aliança, serão até escolhidos como sacerdotes e levitas, algo absolutamente impensável no antigo Israel.
No Novo Testamento, as profecias de Salomão e Isaías cumprem-se na missão universal dos apóstolos e na constituição de um só povo de Deus, a Igreja. A profecia de Isaías, fala da dispersão e posterior reunião das tribos de Israel, o que ilumina o ministério de S. Paulo, que prega tanto aos gentios como aos judeus da diáspora, reconhecendo que a salvação em Cristo é universal, mas não automática: exige conversão, fé e obediência.
Por fim, os ensinamentos de Jesus contrastam fortemente com uma visão contemporânea da salvação como algo garantido para quase todos. Jesus anuncia que a salvação é dom gratuito, mas também resposta livre de cada pessoa à graça de Deus.
A exigência da porta estreita não é uma rejeição arbitrária, mas um convite urgente à conversão, feito por amor. A imagem da porta estreita não é um muro, mas uma entrada, real, possível e concreta, para a qual caminhamos cheios de esperança. Afinal, é precisamente o Evangelho de S. Lucas que é conhecido como o Evangelho da misericórdia. Lucas é quem nos mostra o bom samaritano, o pai misericordioso que corre ao encontro do filho pródigo, o bom ladrão acolhido no último instante, e Jesus que chora sobre Jerusalém. É também em S. Lucas que Nossa Senhora canta no Magnificat: "A sua misericórdia se estende de geração em geração".
Foi também Nossa Senhora que em Fátima ensinou os pastorinhos a rezar:
"Meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno. Levai as almas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem." Esta oração carrega a tensão evangélica entre o real perigo da perdição e a esperança certa no poder da misericórdia divina. Ela não contradiz a imagem da porta estreita, mas reafirma antes que a misericórdia de Deus procura todos, mesmo os mais afastados.
O Papa Bento XVI reflectindo sobre este Evangelho escreveu que ele nos “convida a considerar o futuro que nos espera e para o qual nos devemos preparar durante a nossa peregrinação na terra. A salvação, que Jesus realizou com a sua morte e ressurreição, é universal. Ele é o único Redentor e convida todos para o banquete da vida imortal. Mas a uma só e igual condição: a de se esforçar por segui-l'O e imitá-l'O, assumindo sobre si, como Ele fez, a própria cruz e dedicando a vida ao serviço dos irmãos. Portanto, esta condição para entrar na vida celeste é única e universal. No último dia recorda ainda Jesus no Evangelho não seremos julgados com base em privilégios presumíveis, mas segundo as nossas obras. Os "operadores de iniquidade" serão excluídos, e serão acolhidos os que tiverem realizado o bem e procurado a justiça, à custa de sacrifícios. Portanto, não será suficiente declarar-se "amigos" de Cristo vangloriando-se de falsos méritos: "Comemos e bebemos contigo e Tu ensinaste nas nossas praças" (Lc 13, 26). A verdadeira amizade com Jesus expressa-se no modo de viver: expressa-se com a bondade do coração, com a humildade, com a mansidão e a misericórdia, o amor pela justiça e a verdade, o compromisso sincero e honesto pela paz e pela reconciliação. Poderíamos dizer que é este o "bilhete de identidade" que nos qualifica como seus autênticos "amigos"; é este o "passaporte" que nos permitirá entrar na vida eterna.” 3
1. A Mishnah é uma das obras fundamentais do judaísmo rabínico. Trata-se de uma compilação de tradições orais judaicas, reunidas entre 50 e 200 d.C. O nome "Mishnah" deriva do verbo hebraico shanah, que significa "repetir" ou "ensinar", reflectindo o seu propósito: preservar e sistematizar os ensinamentos orais transmitidos por gerações de mestres judaicos. A Mishnah foca-se principalmente em questões da Lei e litúrgicas.
2. As dez tribos do Reino do Norte de Israel foram conquistadas pelos assírios (722 a.C.), dizimadas e parcialmente dispersas entre várias nações evento que deu origem à ideia das "tribos perdidas". Parte da população permaneceu na região da Samaria, dando origem aos samaritanos. Essa dispersão está em pano de fundo em Isaías 66, onde se anuncia a reunião dos dispersos de Israel entre as nações.
3. Papa Bento XVI, Angelus, 26 de Agosto de 2007