XXIX Domingo do Tempo Comum – A parábola da viúva persistente

Por: Miguel Simões

XXIX Domingo do Tempo Comum — Jesus anima-nos a não desanimar.
A parábola da viúva persistente.

1ª leitura: Êxodo 17:8-13
Salmo: Salmo 120(121), 1-8
2ª leitura: 2 Timóteo 3:14-4:2
Evangelho: Lucas 18:1-8


Neste vigésimo nono Domingo do Tempo Comum a Igreja coloca-nos o Evangelho comumente referido como: a parábola da viúva persistente. A primeira coisa que importa desde já notar é que estão duas personagens em jogo: a viúva persistente e o juiz iníquo. Note-se, também, como, à semelhança da parábola do bom samaritano e do filho pródigo, esta parábola encontra-se exclusivamente no Evangelho de São Lucas. Ora, diz assim:

Depois, disse-lhes uma parábola sobre a obrigação de orar sempre, sem desfalecer:

«Em certa cidade, havia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. Naquela cidade vivia também uma viúva que ia ter com ele e lhe dizia: ‘Faz-me justiça contra o meu adversário.’ Durante muito tempo, o juiz recusou-se a atendê-la; mas, um dia, disse consigo: ‘Embora eu não tema a Deus nem respeite os homens, contudo, já que esta viúva me incomoda, vou fazer-lhe justiça, para que me deixe de vez e não volte a importunar-me.’»

E o Senhor continuou: «Reparai no que diz este juiz iníquo. E Deus não fará justiça aos Seus eleitos, que a Ele clamam dia e noite, e há de fazê-los esperar? Eu vos digo que lhes vai fazer justiça prontamente. Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?» (Lucas 18:1-8)

Em primeiro lugar, podemos reparar em algo típico de São Lucas, a saber, como introduz a parábola num determinado contexto. Quer dizer, Lucas diz-nos que Jesus conta esta parábola para que os Discípulos rezassem sempre, sem que desanimassem. Assim, estamos na posse do contexto, do quadro em que a mensagem e ensinamento de Jesus se enquadra. É curioso notar que a palavra traduzida como "desfalecer", no texto original grego, é engkakeō. Apesar de também poder significar "desanimar" ou "desfalecer", o seu sentido literal vai mais fundo. Engkakeō vem da junção de duas palavras: o prefixo ek- (que significa "a partir de" ou "completamente") e o substantivo kakos ("mau"). Ou seja, esta palavra transmite a ideia de alguém que está completamente mergulhado no mal.

É isso que acontece quando passamos por situações difíceis: ficamos dominados pelo que é mau, e aí surge a tentação de desanimar. Mas o que Jesus nos quer ensinar é precisamente o contrário — a rezar sem engkakeō, ou seja, a não desanimar mesmo quando tudo à nossa volta parece mau.

É neste sentido que Jesus conta a parábola da viúva persistente. Sabemos que o juiz “não temia a Deus nem respeitava os homens”. Portanto, por um lado, não temia a Deus, i.e., na linguagem do Antigo Testamento, não guardava os mandamentos. Por outro, não respeita os homens, i.e., não os ama. Assim, percebemos que o juiz é iníquo porque não ama a Deus nem ao próximo. Sabemos, também, contudo, que, alegoricamente, o juiz representa Deus, o que se afigura um pouco estranho, uma vez que Deus é o oposto absoluto de iníquo. Deixemos, no entanto, por agora, este problema de lado e avancemos na parábola.

“Faz me justiça contra o meu adversário” pede a viúva ao juiz iníquo. Ora, a palavra grega aqui utilizada, a terminologia técnica, é uma terminologia jurídica. Quando a viúva diz “Faz-me justiça”, o que significa é: “Dá uma sentença justa a meu favor contra o meu acusador.” Ou seja, o adversário não é apenas uma espécie comum de rival, mas alguém que aparentemente acusou esta mulher ou a persegue. De modo que esta insiste com o juiz para que faça justiça e a justifique ou reivindique contra o seu acusador ou perseguidor. Inicialmente – “durante muito tempo” – o juiz simplesmente ignora-a porque não quer saber de uma viúva que está a ser perseguida ou falsamente acusada.

Ora, só isto já mostra que há aqui um problema, dado que se recuarmos ao Antigo Testamento vemos que há um certo grupo de pessoas a quem Deus presta especial atenção: as viúvas, os órfãos e os estrangeiros. Em Êxodo 22:20-23, encontramos uma lei precisamente sobre isto. De facto, a protecção por parte de Deus à viúva, ao órfão e ao imigrante – ou ao forasteiro, estrangeiro – é um tema recorrente do Antigo Testamento. Quer dizer, a protecção de Deus a pessoas que não têm forma de se protegerem: a viúva não tem marido, o órfão não tem pais, e o forasteiro ou estrangeiro (o imigrante) não tem uma rede familiar – ou, em alguns casos, leis – que os protejam. Estas são, portanto, as pessoas mais vulneráveis da sociedade antiga. Assim sendo, ao ouvirem uma parábola sobre uma viúva que pede ao juiz que a vingue, i.e., que a proteja do seu acusador ou adversário, os Discípulos reconheceriam o eco desta passagem do Antigo Testamento que diz que, se a viúva for oprimida e clamar por ajuda, Deus ouvi-la-á. O que mostra, de facto, quão iníquo, injusto, o juiz está a ser ao ignorar o pedido da viúva, pois quebra uma das leis mais básicas da justiça social no Antigo Testamento.

Na verdade, a própria ideia de justiça social – e doutrina social, como a doutrina social da Igreja – remonta ao Pentateuco. Encontra-se enraizada nas leis do Pentateuco, tanto em relação à economia, ao que fazer com a riqueza, dinheiro, propriedades, como também quanto à perseguição e opressão dos membros mais vulneráveis da sociedade, como as viúvas, os órfãos e os forasteiros.

Mas, voltando ao texto grego, há um detalhe curioso que muda a forma como vemos a chamada "viúva persistente". O juiz diz: " já que esta viúva me incomoda, vou fazer-lhe justiça, para que me deixe de vez e não volte…" — mas a palavra usada aqui é hypōpiazō. Esta palavra não significa apenas "incomodar", mas literalmente "dar um murro debaixo do olho", ou seja, deixar um olho negro.

Isto quer dizer que a viúva não é apenas persistente — ela é ameaçadora. É alguém de quem até o juiz tem medo, como que a dizer: "Melhor resolver isto antes que ela me apareça à porta e me dê um soco!" Há aqui, portanto, um toque de humor na forma como Jesus conta a história, apresentando uma personagem que é tudo menos frágil.

É aqui que a história termina e Jesus dá o nimshal, i.e., a explicação, aos discípulos: “E o Senhor continuou: «Reparai no que diz este juiz iníquo. E Deus não fará justiça aos Seus eleitos, que a Ele clamam dia e noite, e há de fazê-los esperar? Eu vos digo que lhes vai fazer justiça prontamente.” Voltando ao problema que se tinha deixado de lado, porque é que Jesus utiliza uma parábola em que utiliza um juiz iníquo como símbolo alegórico para Deus? A resposta é simples. Jesus recorre a um tipo de argumento muito comum na literatura judaica: o qal-va-chomer, uma expressão hebraica que significa “do menor para o maior”. Isto é exactamente o mesmo a que nós chamamos um argumento a fortiori, ou seja Jesus está a utilizar aquilo a que poderíamos chamar um argumento por maioria de razão Portanto, se um juiz injusto acaba por fazer justiça a uma viúva por causa da sua insistência, quanto mais o juiz justo do universo – ou seja, Deus – fará justiça aos Seus eleitos, que Lhe rezam com persistência e constância. Mesmo que a parábola possa, à primeira vista, causar alguma estranheza – no sentido em que compara Deus a um juiz injusto –, no fundo, faz sentido. Jesus pede-nos, então, para ser como a viúva persistente, a não desanimar, a não pensar que fomos abandonados, esquecidos, por Deus. “Garanto-vos: se até um juiz injusto acaba por fazer justiça a uma viúva persistente, quanto mais o juiz justo do universo, Deus, fará justiça aos Seus escolhidos. E fá-lo-á rapidamente, prontamente.”

Por fim, temos a passagem final, que é uma das mais sóbrias de todo o Novo Testamento. Já vimos Jesus dizer várias coisas difíceis no Evangelho de São Lucas e esta é uma delas, pois é profundamente séria. Jesus diz: “Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” A impressão que esta pergunta dá é que a resposta é: não… Então, por que razão diria Jesus tal coisa? Dois pontos. Primeiro, esta última frase dá-nos uma pista sobre como Jesus está a falar do juízo final quando menciona que a justiça há de vir prontamente. Ou seja, que as injustiças terrenas não serão rapidamente resolvidas por algum tipo de tribunal humano. O que já sabemos, pois, de facto, se estamos à espera de que todas as injustiças cometidas por governantes, reis, ditadores, juízes locais, políticos nacionais e regionais sejam reparadas, e que todas as pessoas – especialmente as mais vulneráveis, como os imigrantes, viúvas e órfãos – venham a ser defendidas de forma rápida, justa e eficaz pelos tribunais da terra, bem podemos ficar sentados à espera. De facto, uma das realidades deste mundo caído é que, muitas vezes, a justiça não é feita.

No entanto, como diz Jesus, “a vinda do Filho do Homem”, o juízo final, embora nos possa parecer distante, do ponto de vista de Deus está “para breve”. Vai acontecer rapidamente, e isso é especialmente verdade se considerarmos o juízo individual de cada um de nós. Assim, Jesus começa a falar da vinda do Filho do Homem porque a justiça de que fala não é uma justiça terrena, mas sim a vindicação escatológica, aquela que ocorrerá no juízo final, na vinda do Filho do Homem. Esse é o primeiro ponto fundamental.

Agora, quando Jesus pergunta se encontrará fé sobre a terra, a razão pela qual a resposta implícita parece ser ‘não’ é por causa de algo que Jesus diz, e.g., no Evangelho de São Mateus 24, no famoso discurso do monte das Oliveiras, em que Jesus descreve o que vai acontecer antes do juízo final, antes de o Filho do Homem vir nas nuvens do céu para julgar. E em Mateus 24:12, Jesus diz que, antes da vinda do Filho do Homem, haverá um tempo de grande tribulação, um tempo de enorme maldade no mundo. Em que não só aumentará o mal, o sofrimento, a perseguição, as falsas profecias e os falsos messias, como também: “o amor de muitos resfriará”. Em outras palavras, haverá uma grande apostasia, uma rejeição massiva de Deus por parte da maioria da humanidade. Também São Paulo fala disto na Segunda Carta aos Tessalonicenses, capítulo 2, onde afirma que antes da vinda do Filho do Homem terá de vir primeiro a grande apostasia, um grande afastamento da fé, com muita decepção e um aumento generalizado da maldade. Jesus está a pressupor aqui – e, aliás, esta é uma ideia muito antiga no judaísmo – que a era da salvação será precedida por um tempo de tribulação, trevas, pecado e falta de fé. Tal visão contrasta radicalmente com a ideia moderna, segundo a qual as coisas tendem a melhorar progressivamente até que venha o fim. Mas, de facto, não é isso que vemos nem na escatologia judaica antiga, nem no ensino de Jesus: o que vemos é que um tempo de grande apostasia antecede o juízo final.

Assim, quando Jesus pergunta, “Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?”, quer, com esta pergunta sóbria, ensinar-nos o que devemos fazer. Ou seja, mesmo que todos à nossa volta se afastem da fé – apostasiem – não apenas membros da Igreja, mas até os próprios líderes da Igreja, com escândalos, trevas e pecado, tanto no ocidente como no oriente, no norte e no sul… Jesus diz “orar sempre, sem desfalecer”, quer dizer, que devemos nós fazer? Não desanimar, desfalecer, nos envolver pelo mal. A nossa resposta à apostasia deve ser a oração constante, persistente. Perseverar na oração. É essa a mensagem da parábola. E é algo de que todos precisamos hoje: a virtude da esperança, e o encorajamento para viver com fidelidade num mundo que, por vezes, é profundamente mau.

Neste sentido, podemos ver na 1ª leitura um exemplo concreto disso mesmo. Aqui encontramos uma história, talvez não tão famosa como outras, do Antigo Testamento. Trata-se da história dos israelitas a combaterem os amalequitas. Ora, se olharmos para o livro do Êxodo, capítulo 17, os amalequitas eram o povo de Amalec, e eram inimigos declarados de Israel. Quando os israelitas saíram do Egipto e iam a caminho da Terra Prometida, os amalequitas levantaram-se contra eles, enfrentaram-nos em batalha e fizeram com que os israelitas recuassem, impedindo-os de seguir directamente para a Terra Prometida. Como resultado, acabaram por passar 40 anos no deserto, a vaguear. Ora, basta olhar para um mapa para ver que não se leva 40 anos a andar do Egipto até Israel. Não é assim tão longe. Por isso, os amalequitas eram vistos como um povo amaldiçoado, pois impediram que o plano de Deus – o plano de levar os israelitas directamente para a Terra Prometida – se cumprisse.

Ora, quando os israelitas travam batalha com os amalequitas, dá-se uma cena muito conhecida, a partir do versículo 8. E diz o seguinte:

Veio então Amalec e combateu contra Israel em Refidim. Moisés disse a Josué: «Escolhe para nós homens, e sai para combater contra Amalec. Amanhã eu permanecerei firme no cimo da colina e terei a vara de Deus na minha mão.»
Josué fez como Moisés lhe tinha dito, para combater contra Amalec. Moisés, Aarão e Hur subiram ao cimo da colina. E acontecia que, enquanto Moisés tinha as mãos levantadas, era Israel o mais forte; mas quando descansava as mãos, o mais forte era Amalec. Mas as mãos de Moisés ficaram pesadas. Pegaram então numa pedra e puseram-na debaixo dele, e ele sentou-se sobre ela. Aarão e Hur sustentavam as mãos dele, um de um lado e outro do outro. E assim as mãos dele permaneceram firmes até ao pôr do sol. Josué venceu Amalec e o seu povo ao fio da espada.

Pois bem, que tem isto que ver com o Evangelho? Ora, se repararmos bem o que Moisés está aqui a fazer é, na verdade, uma forma física de oração, ou seja, o levantar das mãos corresponde a uma súplica, pedido, de intercessão por parte de Deus. De tal modo que enquanto Moisés ora – levanta as mãos – Israel ganha, mas quando Moisés descansa as mãos – desfalece, desanima –, então Amalec ganhava.

Olhemos, agora, para o refrão do Salmo de hoje: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra.” O tema central deste salmo é que o Senhor é o nosso guardião, o nosso protector. Aquele que fez o céu, a terra e o universo, é o mesmo que te protege. Esta é uma verdade extremamente importante, muito embora de fácil esquecimento, acima de tudo quando estamos a perder o ânimo, a desanimar, desfalecer. Ou seja, se as provações, tribulações, sofrimentos, perseguições e batalhas deste mundo nos estão a deitar abaixo, é porque muito provavelmente nos esquecemos que o nosso auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra. Trata-se de uma imagem tipicamente judaica da omnipotência de Deus. Portanto, se acreditamos verdadeiramente que o Senhor é Deus, se acreditamos que Ele é todo-poderoso, que criou o céu e a terra, então, qualquer provação, seja a perseguição dos israelitas pelos amalequitas, a perseguição da viúva pelo seu adversário, ou ainda qualquer perseguição ou dificuldade pelas quais passamos no dia-a-dia, nada disso é demasiado grande para Deus. E se o salmo diz a verdade, i.e., que Ele é o nosso guardião, protector, sombra, então de que temos medo? Como nos disse Jesus, e como têm insistido os Papas: “Não tenhais medo!”.

Ora, se realmente acreditamos que o Senhor, Criador do céu e da terra, é o nosso guardião e Deus, como é que devemos rezar? São Cirilo de Alexandria, Padre da Igreja do século V, Doutor da Igreja, que escreveu um dos mais antigos comentários ao Evangelho de São Lucas de que dispomos, diz o seguinte sobre a parábola da viúva persistente: “É, afirmo eu, dever daqueles que consagram a sua vida ao serviço de Deus, não serem preguiçosos na oração, nem tampouco a considerarem como um dever árduo e penoso; mas sim alegrarem-se, por causa da liberdade de acesso que lhes é concedida por Deus, não com negligência nem descuido, mas com zelo e constância; pois Deus quer que falemos com Ele como filhos com o pai... Que Deus escuta aqueles que rezam, esta parábola assegura-nos. A persistência da viúva oprimida venceu o juiz iníquo, que nem temia a Deus nem respeitava os homens. Mesmo contra a sua vontade, atendeu o seu pedido. Como não aceitará Deus – que ama a misericórdia e detesta a iniquidade, e que sempre estende a sua mão àqueles que O amam – aqueles que se aproximam d’Ele dia e noite e os vingará como Seus eleitos? ... Excelente, portanto, é pedir com oração constante...» A nossa oração deve, então, ser constante; de tal modo que, como vemos com Moisés, se os nossos “braços” ainda não estão cansados de rezar, então provavelmente ainda não estamos a rezar o suficiente. Ou então senti-los-emos a pesar não tarda nada. Aí, tal como Moisés, precisaremos da ajuda dos nossos amigos, da Igreja. Assim sendo, não nos esqueçamos de rezar com os outros também. Procuremos erguer – e ser erguidos – os irmãos e irmãs em Cristo e a sustentar-nos uns aos outros na batalha da oração – porque é mesmo uma batalha. Mas a boa notícia, a boa-nova, é que já sabemos quem é o vencedor.

Texto baseado em “Mass Readings Explained – Year C – 29th Sunday Ordinary time” por Brant Pitre.

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